Feminismo na América Latina: Revindicando Território

Por Mariana Fideles e Juliana Mercuri do Obesrvatóri@ dos direitos e Cidadania da Mulher
Originalmente publicado na 4º edição da Revista Fala Guerreira

“el Feminismo no es blanco”
( O feminismo  não é branco)

Como todos os movimentos políticos, o feminismo nasce de uma necessidade. No caso, nasce das necessidades das mulheres, e portanto sua teoria e prática se desenvolve a partir das necessidades das mulheres.

A narrativa histórica do feminismo na América Latina foi realizada por mulheres que queriam fazer um contraponto à história contada pelos homens. Ao fazer a pesquisa nos deparamos com uma questão: quem foram e são as mulheres que contam essa história? O que elas contam? A historiografia feminista latinoamericana nos deixa em uma situação ambígua: se por um lado nos interessa conhecer a história das lutas das mulheres no nossa continente, por outro, também estamos reféns de nos depararmos com a seleção de fatos e registros organizados por mulheres majoritariamente brancas e burguesas.

A história “oficial” produzida pelos homens e brancos, contada através de publicações nas universidades omitem propositalmente a participação de não brancos e mulheres. O esforço de apagar a história dos oprimidos é uma estratégia permanente de poder utilizado pelo patriarcado ocidental branco. A imposição do silêncio é sem dúvida uma das grandes violências da dominação masculina branca europeizada, que além de violentar os corpos com seu comportamento genocida, aniquila também qualquer modo de viver e ver o mundo que não seja o seu. É o que se chama epistemicídio, provocar a morte de outros conhecimentos e maneiras de conhecer o mundo.

Sabemos também que mulheres brancas e de classe alta são em todo o continente quem ocupam predominantemente os espaços acadêmicos de produção de conhecimento. Ao enfrentarem os homens para ocuparem o meio acadêmico com seus corpos e suas narrativas, produziram e ainda produzem teoria e análise política feminista da “Nossa América”. Geralmente, escolhem dados e fatos para seus trabalhos que, mesmo realizado em contraposição daqueles produzidos pelos homens, refletem o ainda atual racismo e classismo presente no feminismo e na academia.

O que isso quer dizer? Que quando pesquisamos feminismo latinoamericano nos deparamos quase sempre com narrativas feitas por mulheres brancas, de classe alta e intelectuais carregadas de valores dos poderes dominantes. A partir de seu lugar na sociedade acabaram criando uma ideia de mulher que construiu um imaginário de mulher latino americana que não corresponde às múltiplas realidades e experiências de ser mulher neste território. São os reflexos do que chamamos de feminismo hegemônico.

Sabemos que o feminismo hegemônico contribui para o avanço em direção a equidade  dentro do sistema masculino dominante, mas isso não significou dignidade plena para as mulheres, menos ainda para mulheres que sofrem também opressão por sua raça e classe.

Presenciamos uma vez e outra vez mais a dinâmica de uma cadeia de silenciamentos: homens brancos que silenciam homens não brancos e mulheres. Mulheres silenciadas pelos homens; E mulheres brancas tomando as vozes de mulheres negras e indígenas e impondo-se como representantes de todas as mulheres.

Então, para falarmos da história do feminismo latino americano podemos falar também de um feminismo hegemônico, de uma narrativa só, que pretende ser oficial. Aqui contaremos rapidamente essa história porque ela também é parte do feminismo na América latina, fazendo sempre a ressalva de que não contempla o bem viver de todas as mulheres do continente. Destacaremos vertentes do feminismo latino americano que estão ativos atualmente, mas que não podemos afirmar ainda quando começaram a entender-se como movimentos políticos. As origens desses movimentos são e serão contadas pelas suas ativistas e teóricas de acordo com suas necessidades. Historicamente as universidade e instituições não foram espaços ocupados por feministas latino americanas indígenas, negras, lésbicas e transexuais, reproduzindo uma história única. Formatar trajetórias políticas em publicações acadêmicas, políticas institucionais e ONGs – espaços de poder – parece ser o formato adotado pelo feminismo hegemônico para legitimar-se como um movimento aglutinador de todas as mulheres.

Em toda a América latina a luta por direitos civis e legais das mulheres durante as décadas de 1910 a 1940 foi pragmática: articularam-se respostas aos ataques antifeministas dos homens que se assustavam pelos seus ideias, tentaram e conseguiram a reforma dos códigos civis para superar a subordinação legal das mulheres ao pai ou ao esposo, obter igualdade civil com os homens e fundaram partidos abertamente feministas. A maioria das analistas feministas da América Latina concordam que entre as décadas 1940 até 1970 foram “anos adormecidos” para o movimento feminista e o feminismo teórico latino americano.

Nesse período da história regional as lutas sindicais nas quais as mulheres estavam envolvidas minguavam; o sufragismo já não tinha razão de ser, a moda massiva impôs padrões; a política voltou a bases mais conservadoras, e as mulheres dos setores populares sofriam com as repressões de seus movimentos. Apesar desta atuação contida durante esses anos, a literatura produzida por mulheres latino americanas dessa época questionou a cultura e descrevia violências e opressões, enumerava injustiças, renegava o dever de ser feminino.  Vítimas ou heroínas, as personagens de escritoras reinventaram narrativas ao apresentar interesse pelo cotidiano, as rebeliões ocultas, as solidariedades interclassistas e interraciais entre mulheres.

No fim da década de 1970, o feminismo na América Latina juntou mulheres ao redor de um projeto que se opunha ao autoritarismo na vida cotidiana e na vida política e revindicava uma identidade feminina. Explorou a liberação do corpo e se multiplicaram os grupos de autoconsciência, as organizações de mulheres, as publicações libertárias e coletivas nos espaços autônomos e outras formas de resistência.

Durante três décadas, o feminismo latino americano foi se diferenciando, fortalecendo seu poder de romper, fazendo emergir a voz de mulheres lésbicas e periféricas, às políticas de identidade negra e indígena. Propuseram outro projeto para as mulheres: já não a emancipação pela lei, senão a liberação sexual, teórica, política, corporal de suas vidas. Mulheres de diversos lugares de fala no território – se fizeram com a palavra para expressar posições claramente diferentes sobre a política das mulheres e para as mulheres, provenientes de diálogo entre sí. Se essa diversidade não for respeitada corremos o risco de reproduzir uma história única, a de um só feminismo Latino Americano e também hegemonista, aniquilando outras territorialidades.

E agora?

Acreditar na superação do modelo de sociedade vigente é uma escolha política de potencial revolucionário. Os feminismos latinos americanos que lutam contra o patriarcado, também lutam para contar a experiência de grupos de mulheres que foram silenciados pelo feminismo hegemônico.  Essa reivindicação por falar de si desde de um lugar pode ser interpretada também como uma reivindicação pelo território. O território é o lugar onde vivemos, onde pensamos e criamos significados para nós mesmas e para o mundo do qual fazemos parte. É o lugar da nossa experiência, e por isso ao reivindicar o lugar de onde pensamos e falamos de nós mesmas, também reivindicamos o território. O corpo também é território. Os feminismos que apresentaremos evidenciam territórios profundos, que se integram, sobrepõe, negam e superam o território único, que recebeu do colonizador o nome de América Latina.

  • O Feminismo desde Abya Yala: Abya Yala é o nome pelo qual os povos originários chamam o território que conhecemos como América Latina. Umas de suas manifestações é o Feminismo Comunitário. Através do território abya yala existem diversas adaptações dessa prática e teoria feminista, modelada pelos valores dos diversos povos indígenas. Um de seus aspectos centrais é concepção de organização social onde a comunidade é formada metade por homens e metade por mulheres:  “A negação de uma das partes atenta também contra a existência da outra. Submeter à mulher a identidade do homem, ou vice e versa, é cercear a metade do potencial da comunidade, sociedade ou humanidade. Ao submeter à mulher, se submete a comunidade porque a mulher é a metade da comunidade e ao submeter uma parte da comunidade os homens se submetem a si mesmos, porque eles também são comunidade.” (PAREDES, 2010). Propõem outro projeto de socialização a partir desse entendimento. Este feminismo rejeita a ideia de que antes da colonização não havia dominação dos homens sobre as mulheres e afirma que o processo colonizador combinou estruturas de dominação das sociedades que já ocupavam o território com a dominação patriarcal do colonizador, vulnerabilizando duplamente a condição das mulheres. O pensar desde si proporcionou a esse feminismo um marco conceitual próprio que corresponde aos valores culturais dos povos indígenas

http://www.iconoclasistas.net

Infográfico La Trenza Insurrecta produzido pelo coletivo Iconoclassistas, que apresenta fatos da história da resistência indígena e a participação das mulheres

  • LesboFeminismo A sexualidade da mulher foi questionada pelas feministas que nomearam em feminino os alcances e limites de uma revolução sexual postulada pelos homens progressistas. A análise do corpo e da sexualidade das mulheres por mulheres, armadas de especulações próprias e do próprio direito de nomear sua experiência, revindicando em o próprio corpo como território em si, rompendo com a ideia de sexualidade vinculada a reprodutividade e propondo a separação do gozo sexual das alianças sexo-afetiva. O Lesbofeminismo é uma proposta teórica e prática que aporta o entendimento da heterossexualidade como um regime político e não como uma expressão da sexualidade ou prática sexual. A partir dessa análise se construiu o conceito de heteropatriarcado que faz referência ao fato de que o sistema patriarcal se sustenta mediante a heterossexualidade. O Lesbofeminismo retoma conceitos e aportes do feminismo lésbico branco ocidental, porém realiza uma revisão crítica a partir do contexto Abya Yala, pelo qual diversas autoras incorporam uma análise não colonial, antirracista e classista.


https://lolaperla.carbonmade.com/projects/5175292
Performance Sigo Viva…Cuidado!!! da artista mexicana Lola Perla

  • Feminismo Negro Nasce na falta de espaço da mulher negra dentro do movimento feminista hegemônico e do próprio movimento negro, fazendo a sua intersecção de sujeito mulher e negra. No Brasil tem a sua constituição simbólica no I Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido em 1988, com a presença de aproximadamente 450 mulheres, marcado também pelo centenário da abolição. Tem como condição não desvincular a prática da teoria, somando a produção de conhecimento (intelectual e acadêmico) e participação ativa em movimentos sociais. Em suas narrativas destrói as ideias masculinas e brancas de corpo-servil e corpo-sem mente que atingem a sua condição de mulher negra. Propõe uma nova forma de pensar a sociedade a partir desse lugar que ocupa, que experiência opressões que interseccionam gênero, raça e classe, o que lhe conferem potenciais inegavelmente revolucionários.

Cartaz do 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras

Referências:

Francesca GARGALLO, “Teorías y prácticas feministas en Nuestra América”, conferencia leída en el Aula Magna de la Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, Universidad Nacional de Cuyo em :

https://francescagargallo.wordpress.com/ensayos/feminismo/no-occidental/teorias-y-practicas-feministas-en-nuestramerica/

GARGALLO, Francesca, “Las diversas teorías y prácticas feministas de mujeres indígenas”, conferencia leída para la presentación del libro Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América, de Francesca Gargallo (Ed. Desde Abajo, Col. Pensadoras latinoamericanas, 2012, 295 pp.,  ISBN 789588454597), en la Universidad Tecnológica y Pedagógica de Colombia, Tunja, 5 de septiembre de 2012.

https://francescagargallo.files.wordpress.com/2014/01/francesca-gargallo-feminismos-desde-abya-yala-ene20141.pdf

BRITTO, Clovis Carvalho. A organização das feministas negras no Brasil, Núbia Regina Moreira. Cad. Pagu,  Campinas ,  n. 38, p. 433-440,  June  2012 .

Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332012000100016&lng=en&nrm=iso.

access on  05  Feb.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332012000100016.

 

 

 

 

 

 

 

 

Lei Lola

Observatóri@, 10 de outubro de 2019

Hoje, dia 10 de outubro, é o Dia Nacional de Luta contra a Violência à Mulher, instituída em 1980 por movimento que começou em São Paulo, quando mulheres ocuparam as escadarias do Teatro Municipal para protestar sobre o aumento nos crimes contra mulheres em todo o país.

Como a violência contra a mulher não se restringe a violência doméstica, assim como ela vai muito além da violência física, nos tocou trazer na nesta data uma reflexão sobre violência de gênero no universo virtual.

Segundo o relatório da Comissão de Banda Larga da ONU, 75% das mulheres conectadas já sofreram violência cibernética (dados de 2015) . E de acordo com a ONG Safernet, as mulheres correspondem 65% dos casos de cyberbullying, ofensa e intimidação pela internet e 67% dos casos de constrangimentos íntimos e sexual (dados de 2017).

Em abril deste ano foi sancionada a Lei 13.642/18, conhecida como Lei Lola, que atribuiu à Polícia Federal a investigação de crimes cibernéticos de misoginia. A lei define misoginia como ódio ou a aversão às mulheres.

Importante lembrar que a atitude misógina pode ocorrer de diversas formas, como a discriminação sexual, hostilidade, aversão, piadas, depreciação, ideias de privilégio e superioridade masculina, violência e sua propagação, objetificação sexual, entre outros que tenham caráter misógino.

A competência de investigação da Polícia Federal não exclui a participação da Polícia Civil e não significa que a ação será julgada pela Justiça Federal, seguindo competência constitucional, onde o julgamento da maioria dos crimes e infrações será de competência da Justiça Estadual.

O nome da lei homenageia a blogueira Lola Aronovich, ameaçada desde 2008, quando iniciou o blog de relatos “Escreva Lola Escreva”. A blogueira registrou boletim de ocorrência por diversas vezes e a Delegacia da Mulher de Fortaleza, onde mora, dizia não ter condições de realizar as investigações, pois envolviam ações complexas, investigação com inteligência, como quebrar o sigilo de um site hospedado no exterior. Na ocasião, a Polícia Federal, que detinha os instrumentos para dar seguimento, respondia que não era sua atribuição investigar esse tipo de crime, tendo a blogueira sofrido por anos perseguição, ameaças, hostilização, sem conseguir dar andamento nas investigações.

Além da inclusão da atribuição da Polícia Federal para investigação de tais crimes, a lei em referência também tem sua importância política. A utilização do termo misoginia e sua definição legal pelo legislador configura importante passo para o escancaramento das opressões estruturais que atinge a diversidade de mulheres na desigual sociedade brasileira, não podendo a discussão da violência contra a mulher se resumir em briga de marido e mulher.

Além disso mostra que o princípio da liberdade de expressão não é absoluto e deve ser entendido junto com outros princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana e igualdade jurídica.

Os últimos tempos foram de ataques às mulheres e suas organizações de luta e denúncias, são diversos os casos como o da blogueira que deu nome a lei, o mais recente, inclusive, se deu às administradoras do grupo @Mulheres contra bolsonaro, com celulares hackeados, contas invadidas, além de campanhas que atacam e diminuem às mulheres, com exposição e humilhação pública. Não vamos retroceder, nenhum passo atrás.

Observatori@ de Direito e Cidadania da Mulher

Fontes e referências:

http://www.planalto.gov.br/…/_Ato2015-2…/2018/Lei/L13642.htm

https://tecnologia.uol.com.br/…/mulheres-sao-maiores-vitima…

https://nacoesunidas.org/quase-75-das-mulheres-ja-sofreu-a…/

https://www.huffpostbrasil.com/…/nerds-e-machismo-porque-m_…

Um rio sem margem

Juliana Mercuri

Há momentos do passado que nos visitam no presente. A cada visita experimentamos sensações já conhecidas, seus significados se confundem e se desdobram, e pode ser que não cheguemos a conclusão definitiva sobre o que eles realmente representam. Me visita a cada tanto, esse momento de três horas e meia que é o que dura a travessia de Belém a Marajó.

***

Presença

Enquanto eu tomava um tacacá e várias cervejas, um amigo novo disse que queria voltar para o Marajó. Eu queria ir, mas não sabia o caminho e decidi acompanhá-lo. Dois dias depois a gente pegou o barco no porto Belém. Embarcamos depois da chuva de todo dia que dá nessas latitudes, mas as nuvens carregadas ainda não tinham ido embora. E não foram. Sentei no barco com a minha mochila e meu parceiro se sentou logo atrás de mim. Ele riu do escuro do céu, deitou e dormiu.

O barco zarpou e começou a balançar. Chovia forte, chovia na Selva. Me acomodei no banco.Tinha uma mulher na minha frente e outra meu lado. O vai e vem estava intenso e busquei o horizonte para não me marear. Depois de um tempo, a luz diminuiu e a chuva rapidamente mostrou que era Tempestade Tropical. Eu tentava olhar pra frente, mas o barco mergulhava no marrom profundo da água do rio e logo em seguida decolava em direção ao céu embolado de cinza. Primeiro o rio depois o céu, um e outro, pra cima e pra baixo. Tinha momentos que as ondas vinham de qualquer lado, o ritmo se perdia, parecia que o barco, ironicamente caia de barriga num baque seco e que a madeira gemia de dor.

Bem mais que medo. Minha boca abriu quando perdi de vista o pedaço de terra do qual eu tinha partido. Além da água que caia, um rio assim sem margem, eu nunca tinha visto. Aquilo era grande demais. Era enorme, dava uma espécie de cegueira atrás dos olhos. Não existe nada mais arrebatador que a Natureza se manifestando nos nossos sentidos. Esta sensação de sentir ela imensa, se mexendo com força no seu próprio tempo. Esse movimento poderoso que faz o corpo sentir a certeza de que é Natureza e que a realidade parece ser só um aspecto do presente.

Minha mãe me disse uma vez que achava que o vento faz a gente se sentir presente. E no caminho de ida para o Marajó, ventava muito. Eu balançava arrebatada, tudo se mexia dentro e fora de mim. Me sentia presente, mínima e inteira no tempo real de norte imenso. Nessa paisagem eu vi os olhos bem abertos da mulher que tava na minha frente e, pouco depois, encontrei também o olhar da mulher que estava meu lado.

De mãos dadas

A gente só começou a se falar mesmo quando a mulher que tava do meu lado teve um reflexo de susto, e pegou a minha mão. Nos olhamos com alívio, ela me pediu desculpa e eu respondi que tava morrendo de medo. Imediatamente, a mulher na nossa frente virou, e num só movimento de corpo, pegou nossas mãos. Ela falou que também estava assustada, que já tinha pegado viagem ruim, mas que aquilo ela nunca tinha visto.

A mulher que tava do meu lado concordou e disse que fazia a travessia do Marajó a Belém todos os dias, que tava acostumada a tempo ruim, mas aquilo tava demais. Ela contou que ia pra Belém ver a filha que estava internada num hospital da cidade. Partia no primeiro barco do dia, e quando o horário de visita acabava ela voltava pra casa. Eu perguntei o nome dela, ela disse “Pâmela” e eu disse o meu nome também. A Pâmela continuou falando, disse que a filha dela estava reagindo bem ao tratamento, e que ela tinha outro filho. O menino fazia desenhos para irmã ausente, ia sozinho para escola e era o melhor da classe. Os brincos de argola grandes que ela usava balançavam intensamente enquanto ela falava

A mulher na nossa frente se chamava Cristiane. Ela me disse que viu minha tatuagem e, sem soltar as nossas mãos, mostrou as que ela tinha: O nome da mulher e da filha, “uma em cada braço”. Ela disse que criança dava mesmo trabalho, mas que ser mãe era tudo nessa vida e que valia muito a pena. Sua filha, na verdade, era filha de uma tia que tinha filhos demais pra cuidar e ela e a companheira dela decidiram criar a menininha. Contou que as três passeavam na moto de muitas cilindradas que elas tinham, que iam visitar a família de uma e de outra em várias partes da Ilha. Ela e a namorada iam também de moto pras festas e esperavam amanhecer pra ver melhor as poças de lama na estrada de volta para casa. Ela disse que era festeira, mas que só bebia mesmo cerveja.

Aí elas perguntaram da onde eu vinha, se eu tava passeando, se eu tava sozinha. Eu respondi que eu estava viajando, que era de São Paulo. Que estava ali pra conhecer o Norte. Elas me olhavam e eu senti que deveria continuar falando. Acabei dizendo que estudava geografia, e achava importante conhecer outros lugares, que gostava de aprender coisas. A cada palavra eu me esvaziava um pouco mais. Um das coisas que eu penso quando esse momento me visita é que eu queria ter dito só meu nome. Aliás, são muitos os momentos em que eu queria que o meu nome fosse a única coisa que soubessem de mim.

Oração

Nossas mãos se soltaram porque o balanço mudou de ritmo e jogou cada uma pra um lado. O rio e o céu continuavam revoltados e tudo estava muito molhado. Se equilibrando, a Cristiane estendeu a mão de novo e sugeriu uma oração. Uma Ave Maria. Eu não achei ruim a ideia porque queria mesmo que alguém tivesse olhando por nós. Elas começaram a rezar e eu balbuciava pra disfarçar que não sabia a oração. A Pâmela errou umas palavras e parou, a Cristiane percebeu, mas continuou concentrada, até o fim.

Se segurando com força ficamos em silêncio quando ela acabou. Eu sentia a Pâmela apertando minha mão quando ela disse que sua família era católica, mas que o marido era “da igreja” e que fazia tempo que não rezava uma Ave Maria. A Cristiane riu nervosa e disse que só rezava quando a coisa apertava mesmo, que sabia que tava mal, mas que tinha um monte de coisas da religião que desconfiava. Que se fosse pelos padres “que são padres mesmo”, ela não teria a família que tanto amava.

Eu disse que tinha sido batizada na igreja católica, mas que passava com um guia de umbanda que minha avó me levava. Também contei que minha avó me ensinou muitas vezes o Ave Maria, mas que com o tempo eu fui confundindo as estrofes até esquecer as frases. A Cristiane disse que também rezava com a avó dela. Enquanto ela falava eu lembrei que na casa da minha avó a gente rezava logo antes de dormir, que ali tudo era cálido e seguro, e isso me deixou feliz.

Balançando ao som da tempestade, a gente falou das nossas avós e de outras coisas que nos fazem sentir um tipo de saudade.  Nesse movimento, de mãos dadas, olhos nos olhos, eu já nem sabia mais como passava o tempo. Quando a gente está presente, tomando rajada de vento na cara, o tempo não tem nada a ver com o que marca o relógio.

Sentitempos

Mais para o fundo do barco, um senhor baixinho com a camisa aberta ligou um rádio a pilha que era potente o suficiente para se ouvir no meio da aguaceira.  O velho que tava com uma mão segurando o rádio e a outra o banco, ria alto e as pessoas riam dele. Lembramos que tinha mais gente no barco e olhamos em volta. Atrás de mim tava meu amigo, que continuava dormindo, abraçado ao banco. A gente riu dele. Por uns segundos, a música pareceu harmonizar o caos das águas e a tempestade pareceu diminuir.

Ainda de mãos dadas, a Cristiane disse que ia a uma festa de Melody no sábado. A Pâmela disse que o irmão dela organizava festas de aparelhagem na Ilha, mas ela não ia muito porque depois o povo fazia fofoca na igreja e a confusão se armava. A Cristiane disse que detestava isso, que alguém sempre via alguma coisa que caia na boca do povo. O povo tem mania de cuidar da vida dos outros.E nós concordamos que principalmente da vida das mulheres

Cuidar da vida dos outros. Contamos histórias que tinham acontecido com a gente, detestamos os algozes e experimentamos as pequenas vitórias umas das outras quando alguém concluía a história com uma boa volta por cima. Contei uma coisa que tinha acontecido comigo e enquanto eu falava eu percebia que aquilo tava muito longe de mim, bem lá atrás no tempo, que tinha um lugar para aquela história, naquela hora. A gente ia falando de coisas assim e tinha pedaços da conversa que eram sobre sentimentos, mesmo que nem tão secretos e nem tão profundos. Dá para saber se tem sentimento numa conversa quando ela se desenrola misturando o passado, o presente e o futuro. E não importa muito a linearidade da narrativa, o adjetivo e nem o verbo exato. E se tem vento, a gente acaba entendendo tudo.

No fim das contas concordamos que seria bom se as pessoas se cuidassem mais entre elas. Que talvez, essa coisa de cada um cuidar do seu, era um mal que resultava em egoísmo e crueldade. Concordamos também que na maioria das vezes, quando alguém cuidava da vida dos demais, cuidava das coisas erradas. Íamos revezando a palavra, uma ia falando, as outras duas concordando, até lembrarmos juntas que tem muita gente boa no mundo. Falamos das pessoas assim que a gente conhecia, demos muitas voltas em histórias de esperança e ficou parecendo que queríamos acreditar que o mundo ia ser um lugar melhor. A Pâmela riu e disse que tanto balanço tinha deixado à gente maluca.

Terra à vista.

De uma hora para outra, a luz do fim do dia entrava no barco, que deixava para trás a nuvem negra que jorrava. Tudo ia ficando mais tranquilo, mas ainda se ouviam os interiores da tempestade. O velho apagou o rádio, o colocou de lado e, botão a botão, foi fechando a camisa. O horizonte finalmente apareceu para separar o céu da água e os passageiros contemplavam a paisagem, aliviados.

Continuava ventando forte. O barulho do rio e da chuva se juntaram num só e eu notei por primeira vez o ruído de motor. Finalmente, apareceu a outra margem do rio e dava pra ver a saúde das arvores. Chegando mais perto eu percebi que eram gigantes, de braços abertos, de todos os verdes. Na medida em que nos aproximávamos eu percebi que elas, como um todo,  também emitiam som.

Já era quase noite quando as luzes do porto apareceram e as pessoas se organizavam para desembarcar. A Cristiane perguntou meu telefone e passei contente enquanto eu anotava o dela também. A Pâmela prendeu o cabelo de novo e retocou o batom num espelhinho de bolsa.  O barco aportou e os passageiros desceram rindo do velho que perguntava que lugar era aquele, que dizia que tava perdido, que os miolos dele tinham caído na água. Só lembrei do meu amigo quando já estava em terra firme e vi ele descendo a rampa com cara de sono.A Pâmela foi embora acenando pra mim enquanto caminhava na direção do marido que a esperava no porto. Me despedi da Cristiane e dissemos coisas bonitas uma pra outra enquanto nos abraçávamos. Meu amigo me chamou de longe assinalando uma van que ia para o Soure e eu lembrei que a viagem até lá não tinha acabado.

***

Como tantos outros momentos que nos visitam, esse que relatei não tem um final extravagante, nem ensina uma grande lição. Às vezes, quando ele aparece, quero dar-lhe um significado definitivo, concreto, mas ele se esfumaça e vai embora. É como se em cada visita, eu acabasse atribuindo-lhe um significado novo, vendo nele um reflexo do que estou vivendo e tentando espremer dele alguma resposta.

Não sei ao certo o porquê esse momento me faz tantas visitas, mas intuo que cada vez que ele vem experimento de novo a sensação de deslocamento. Deve ser por isso:  é de sua natureza se mover no tempo e no espaço. Um deslocamento é um movimento que a gente faz em relação ao todo, que fazemos por inteiro. É, sobretudo, um movimento da percepção. Um deslocamento nos redesenha, como se uma borracha apagasse os contornos do nosso eu, ao mesmo tempo que um lápis desenhasse as novas margens do mapa do nosso mundo. Querendo ou não, depois de um deslocamento, a gente se encontra em outro lugar no mundo e no tempo. Sua potência reside justamente na possibilidade de conhecer outra escala, outras histórias para o mundo e para nós mesmos. Talvez esse momento me visite ainda por muitos anos e que dure a vida toda a tarefa de decifrá-lo. E quando me dou conta dessa possibilidade, desfruto ainda mais de suas visitas.

Sobre o caso de Miguel

Observatóri@, 4 de Junho

Léia Almeida

No Brasil as desigualdades se manifestam cruelmente, cercando, sobretudo a vida das mulheres negras, base da pirâmide social e econômica desse país.  A pandemia escancara a perversidade da elite brasileira, incapaz de qualquer gesto que fuja do parasitismo em terceirizar questões mínimas como levar os cães para passear ou retirar seu próprio lixo. O gênero, raça e a classe traduzem outras disparidades, como é o caso do trabalho de cuidado. Em nossa sociedade movida pela geração de desigualdades, o trabalho remunerado de cuidar e zelar da vida dos outros, produz, em contradição, outras desigualdades. Existe, portanto, uma camada assimétrica de afetos, atenções e cuidados destinados a membros da elite quando comparada aos demais integrantes da população que compõe a base da pirâmide social.

Saiba mais em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/06/03/crianca-predio-prisao.htm

Com quantos crimes a ex-EXECUTIVA da Avon foi construída?

Léia Almeida, 1 de julho de 2020

Mariah Corazza, executiva de 29 anos da empresa Avon, mantinha uma idosa de 61 anos em regime análogo a escravidão. Mariah, filha de Sônia Corazza engenheira química, famosa na elaboração de cosméticos para grandes empresas. O fato retrata a profunda sujeira e violência em que é construída a vida, a carreira, a fama, os cargos das pessoas de posses e sobrenomes.

No caso específico, tortura, exploração, abandono e omissão de socorro. Nos chama atenção empresas que adotam, impulsionam e financiam editais ligados ao feminismo, perpetuarem em seus quadros de gestão e execução pessoas completamente distantes da realidade de suas consumidoras e revendedoras. E o mais perverso, muitas trabalhadoras domésticas complementam suas rendas revendendo Avon; e uma das Executivas da empresa mantinha, em sua casa, uma trabalhadora doméstica idosa no depósito dos fundos da casa, sem banheiro, junto aos demais objetos abandonados.

A perversidade e a covardia da Patroa Mariana Corazza foram tamanhas que a mesma se mudou da residência durante uma madrugada, escondida. Pois em sua cabeça de Sinhá escravocrata é preferível o abandono, a degradação humana ao reconhecimento da trabalhadora como sujeita de direitos e dignidades. É preferível para essa gente pagar 2.000 mil reais de fiança do que estabelecer salário e reconhecimento de humanidade. A crueldade dos fatos revela o sadismo da elite “déspota” brasileira.

https://jornaldebrasilia.com.br/nahorah/idosa-em-condicao-analoga-a-escravidao-e-resgatada-3-responderao-a-processo/

A história das mulheres

Juliana Mercuri

É tão triste quanto fortalecedor,

Tão deprimente quanto esperançoso,

Tão desesperador quando acolhedor

Tão bonito quanto doloroso

As mulheres que forjam,

que são forjadas,

pela insistente vontade de viver

e de fazer viver

umas as outras

 

Essa energia poderosa e desmedida

lança nossos corpos no insistir e na certeza

como uma e como outra,

a terra seca e desnutrida, pode e vai

semear, brotar, florir

Se alimentar de novo.

 

No limite do céu com a terra mora o horizonte.

 

Vai-se improvisando,

de dia e de noite,

em palavra e vibração,

ação e intenção

um tecido leve e translúcido

com textura e cor de cura.

 

Sem ver o tempo passar

sem hora pra acabar,

com o corpo cansado

o coração angustiado,

permanecemos arando,

regando e remexendo.

 

A história das mulheres

é a história da terra.

Que hoje é uma e amanhã é outra.

Se anoitece adoecida

Amanhece fértil e saudável

pronta de novo e para  sempre

Germinar em si

Todos os sonhos do mundo.